25.11.08

Prefácio



O livro que Giovanni Cirino nos apresenta trata de um tema bem inédito, a música popular instrumental brasileira na cidade de S. Paulo. O interesse, porém, não é apenas musical e o enfoque é também sociológico-antropológico, o que amplia o seu ineditismo e importância. O trabalho investigativo se constituiu, certamente, em um desafio para o pesquisador, diante da grande variedade de experiências e tendências musicais e do gigantismo da capital paulista. Afinal S. Paulo apresenta música “dos quatro cantos do mundo” pode-se dizer, seja coreana, japonesa, italiana, indiana, árabe, judaica, cubana, boliviana, angolana, chilena e muito mais o que se possa imaginar. Como dar conta de tanta variedade, nas dimensões e complexidade urbana da capital paulista?

Feito o recorte temático e temporal, voltando-se para a música popular instrumental considerada brasileira, o autor fez pesquisa de campo, com presença nos locais de apresentações, pelos inúmeros bairros/regiões, realizou entrevistas com músicos, enquetes com espectadores, recolheu notícias de jornais e revistas, reuniu CDs e informações de gravadoras e instituições artístico-culturais, acompanhou programação de televisões e rádios, realizou gravações próprias, analisou arranjos, acompanhou seminários especializados, consultou sítios via internet (webgrafia) e reuniu ampla e variada bibliografia, para ter domínio sobre o objeto da pesquisa e das teorias aplicáveis ao tema. O trabalho tem base em uma ampla etnografia da música na capital paulista, uma etnomusicografia que é identificada como “etnografia das performances musicais”, ocupando-se não só dos “sons registrados”, mas, ainda, das suas performances, para avaliar os “materiais” e “as condições de trabalho dos músicos”, conforme explica o autor. 

Revelaram-se, então, facetas pouco conhecidas da metrópole, que é sempre mais lembrada pelos seus congestionamentos diários de trânsito, e pelos negócios, trabalho, gastronomia, indústria, rede bancária, enchentes e outros problemas de ordem social. O trabalho de campo com registro detalhado de 35 apresentações se fez durante um ano, entre janeiro de 2003 a janeiro de 2004, mas no total foram levados em consideração 87 espaços de apresentações, 319 conjuntos/artistas musicais e 777 registros de apresentações, o que é algo notável. 

Para processar tantos dados, espalhados pelo espaço urbano, utilizou-se de um “banco de Dados Geográfico” (“geoprocessamento”), que permitiu realizar consultas de várias ordens, por atributos, por espacialidade e outras, na busca das suas interpretações e conclusões. Mas, além dos aspectos etnográficos, atuais, a pesquisa envolveu grande acúmulo de conhecimentos no que se refere à música popular no Brasil em geral, inclusive do ponto de vista histórico, recuperando referências importantes sobre o assunto desde o século XIX, sobre o choro, as bandas de “coreto” e outras formas de música instrumental. Trata-se, sim, de trabalho de grande erudição.

Tudo se fez possível pois Giovanni é um exemplo pouco comum de alguém que se mostra competente em duas áreas bem distintas, como cientista social e como músico. De modo mais específico, trata-se de um antropólogo e etnomusicólogo que também é guitarrista-violonista, e com vivência no objeto da própria investigação, a música popular. Do ponto de vista da música, trata-se de alguém “de dentro”, como se diz. De fato, temos poucos exemplos de investigadores que podem, de forma competente, utilizar instrumental analítico-reflexivo dessas especialidades centrado em um mesmo objeto de pesquisa. 

Assim, Cirino consegue realizar análise de um arranjo musical, e, ao mesmo tempo, transpor o conceito de harmonia e dissonância, tão usuais nas análises musicais, para as relações sociais no Brasil, da mesma forma como consegue “ver”, baseado em Vitor Turner, na música popular instrumental brasileira a sua colocação em um espaço “às margens dos processos ritualizantes de construção da identidade nacional”, o que é algo típico de preocupação do campo da antropologia. Giovanni percebe, ainda, na música instrumental as “fissuras”, as “tensões” e as “contradições” na sociedade brasileira, como se poderá compreender no decorrer dos capítulos do livro. 

De fato, essa aproximação entre música e antropologia, sem dúvida, traz enormes benefícios para as pesquisas, pois na maioria das vezes as investigações que envolvem enfoques distintos, sobretudo quando miram as artes, deixam débitos de análises em um ou outro deles. Não é o caso do presente trabalho, que traz real contribuição para os estudos da música, pelo seu enfoque, e, também, para a antropologia, pela temática pouco abordada nessa especialidade, diante do conhecido temor dos que “não conhecem música”, embora a música e suas atividades possam trazer muitas, muitas, revelações sobre os grupos humanos. 

Ressalte-se, ainda, no trabalho, o cuidado na questão metodológica e o domínio dos aspectos teóricos, incluindo profusão de autores, sobretudo da antropologia, da sociologia, dos estudos culturais, da etnomusicologia, e das teorias da música. Cirino dialoga com autores bem reconhecidos, como H. K. Bhabha, N. Garcia-Canclini, G. Geertz, V. Turner, J. Derrida, M. Sahlins, M. Mauss, T. Adorno, W. Benjamin, R. DaMatta, J. Blacking e tantos mais, incluindo alguns mais voltados para a música, como E. W. Said, D. Sebesky, J. Aebersold e outros. 

O autor expõe que a investigação está pautada em reflexões “a partir das considerações da antropologia da performance, hermenêutica e etnomusicologia em contexto urbano”. Nesse aspecto, como bom antropólogo, Giovanni levou em consideração a “visão de mundo” nativa, ou seja, a dos próprios músicos, entre os quais, para citar apenas alguns mais conhecidos: Airto Moreira, Antônio Arruda, Carlos Poyares, Magno Pereira, Hamilton de Holanda, Hermeto Pascoal, Nelson Ayres e outros tantos. 

O livro se tornará referencial, certamente, pelo tema pouco estudado, e mais, ainda, pelos aspectos metodológicos nele aplicados. Embora alguns aspectos das conclusões ainda possam merecer outras interpretações e até mesmo discordâncias interpretativas, o que é, inclusive, saudável, na medida em que a aproximação entre música e antropologia ainda é pouco aplicada entre nós, sendo o objeto dessa investigação também pouco estudado, trata-se de uma contribuição importantíssima e corajosa para as investigações do campo da música. 

A leitura flui muito bem, intercalando momentos mais densos, e até difíceis, nas partes voltadas para questões teóricas e suas reflexões, e outras partes de grande “leveza”, como crônicas reveladas pelos entrevistados músicos, que trazem suas experiências e memórias do fazer musical. 

Temos, sim, muito a aprender sobre a música e a sociedade brasileira neste livro. 

Alberto T. Ikeda
Professor de Etnomusicologia e Cultura Popular
Instituto de Artes – Universidade Estadual Paulista (UNESP)
S. Paulo

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