25.4.09

Zé da Velha e Silvério Pontes: chorando no Dinorah

Cheguei cedo, estava marcado para as 21 conforme o informe que recebi de Lili Guimarãez pelo e-mail. O local era o Bar Dinorah, Rua Fidalga, 429, Vila Madalena, dia 12/02/2003. Quando cheguei se apresentava o trio que iria acompanhar a dupla, era uma espécie de passagem de som, onde os músicos estavam experimentando notas graves e agudas para testar a qualidade do som. Tocavam basicamente choro, um repertório interessante na medida em que se distanciava dos “standarts” do choro. Pandeiro, violão de sete cordas e cavaquinho. Fiz um contato mínimo com o rapaz que toca pandeiro. Depois da passagem de som ele veio pegar a água. Descobri que ele era o Netinho, pandeirista do “Nós no Choro”, um conjunto do Rio de Janeiro que se apresentara em Conservatória.

O “Dinorah” é uma casa relativamente pequena, sem grandes estruturas, o estabelecimento é constituído por uma parte principal onde se localiza o palco, com aproximadamente 12 mesas, um espaço que não cabe muito mais de 80 pessoas. Do lado de fora dessa parte central também tem mesas, porém sem visão do palco. A aparelhagem e o palco também são pequenos. O palco tem aproximadamente 5x3m a uma altura de 30 cm do chão. A aparelhagem consiste em uma pequena mesa com poucos canais (6?) um PA e duas caixas de boa qualidade colocadas nas laterais superiores do palco direcionadas para o público. Atrás do palco uma janela que dá para a fachada do bar, possibilitando aos transeuntes observar o que se passa no interior do estabelecimento.

Esperei mais de uma hora para se iniciar a apresentação principal, eram 21: 38 quando se iniciou um movimento, Zé e Silvério estavam do lado de fora conversando com umas pessoas que depois fiquei sabendo que eram convidados/amigos seus do Rio de Janeiro. Uma moça pandeirista tirava fotos com os dois, eles se abraçaram afetuosamente. Os dois são muito simpáticos, lidam e tratam com todas as pessoas com muita educação.


-- [Silvério] É sempre um prazer tocar em São Paulo, ontem fizemos um show em Santo André, amanhã em Campinas e depois em São Carlos. Eu queria agradecer a presença de todos, tocar nesse bar bem aconchegante o Dinorah, e vamo lá né, pouco papo e muita música. Vamos começar com Jacó do Bandolim "Bole Bole".

O trio começa fazendo uma introdução em que se revesavem quatro acordes, depois de mais de 25 compassos entram os dois com um dó grave com duração de quatro compassos, depois de 12 compassos (2/4) se inicia realmente a melodia principal, Silvério fazendo a voz principal e Zé construindo o contraponto no grave com seu trombone. O som tem um estilo muito interessante baseado em fraseado da "gafieira", mesmo os sambas e choros e maxixes ficam com uma "levada" meio gafieira, ou seja, sempre uma construção em que revezam a melodia princiopal o trompete de Silverio e o Trombone de Zé da Velha. Quando um está fazendo a principal o outro está "costurando" uma melodia alternativa que completa o sentido melódico e harmônico da música, esse contraponto é bastante apoiado na função do violão (de sete cordas), ou seja, "baixaria".

Segunda música: Silvério agradece a presença de seus amigos do Rio e anuncia a próxima música de um compositor paulista que era também tropetista: Bonfiglio de Oliveira "O Bom Filho à Casa Torna". Um corta-jaca com uma introdução do violão de 7 que Silvério fez com o Flueglhorn interpretando a melodia principal e Zé fazendo uma 
"baixaria" junto com o violão. Uma música bem "complicada" segundo o termo utilizado por Silvério. Fazem improvisos, iniciando pelo Zé, depois Cavaquinho Alessandro e na vez do Pandeiro ele desdobra a velocidade acelerando novamente até uma velocidade bem acima da que se iniciou o Bonfiglio, e Silvério toca então a melodia da marchinha de carnaval "Varre Varre Vassourinha" apenas como uma citacão retornando em seguida para "O Bom Filho à Casa Torna" e finalizando a Música. Silverio apresenta a banda: Charles no violão de 7, Alessandro no cavaquinho e Netinho no pandeiro:

- [Silvério] "Essa é a juventude no choro, 20, 21 e 22, aliás, meu chapinha faz amanhã 23 (se referindo a Alessandro), daqui a pouco vamos tocar um parabens para ele, e o nosso mestre Zé da Velha Trombone.

- [Zé da Velha] Muito obrigado meus amigos, é um prazer está aqui nessa cidade maravilhosa tocando pra vocês e esperamos vir outras vezes, e no Trompete Silverio Pontes.


- [Silvério] "Vamos tocar uma música de um compositor de "Banda de Música" do Rio de Janeiro que nasceu em Paquetá, o grande mestre de Banda de Música e compositor de choro, que nasceu no século retrasado: Anacleto de Medeiros. Em homenagem a todos aqui que não bebem "O Boêmio" (risos).

Todas as músicas tocadas carregam uma referência ao passado, certa nostalgia, um tempo que "não volta mais", mas é possível entrar em contato com esse mundo tocando as músicas da época. Da parte do público, é impressionante que muita gente conhece as músicas e cantam junto com o trombone de Zé da Velha. Nas apresentações de choro essa referência é comum, no caso da “Banda de Música” e da “Gafiera” ambas são manifestações que estão cada vez mais difíceis de encontrar, o que torna esse sentimento de nostalgia e saudade ainda mais forte.

- [Silvério] É sempre importante essa coisa de valorizar a “Banda de Música”, porque eu acho que o Brasil, os músicos de sopro do Brasil inteiro e do mundo inteiro todos passaram pela banda de música, eu acho que 
toda cidade que se considera uma cidade tem que ter uma banda de música. Bom, eu a minha formação é de banda de música a do Zé da Velha e eu sempre procuro tocar alguma coisa lembrando as bandas de música me dá muita, muita saudade. Vamos tocar agora o mestre Pixinguinha, o qual Zé da Velha já tocou junto e teve o prazer de conhecer, o Pixinguinha. E o apelido do Zé da Velha é Zé da Velha porque tocava com a velha-guarda de Pixinguinha. Então lembrando os velhos tempos “Ainda me Recordo”, Pixinguinha.

O público sorri ao ouvir Zé e Silverio. O contraponto muitas vezes é “hilário” observa-se o público sorrindo – não se sabe se estão rindo da música (que tem um senso de humor incrível segundo as palavras de um ouvinte) ou se estão rindo da habilidade dos músicos de tocarem com desembaraço aquelas músicas tão “complicadas”.

- [Silvério] É sempre complicado tocar no trompete e no trombone, vamos tocar agora uma mais complicada “Cheguei” de Pinguinha também.

Sem mais delongas inicia-se mais uma música. O clima da gafieira acaba tornando as coisas mais interessantes tanto para quem ouve quanto para quem toca, a impressão para quem ouve é que se está em outra época, talvez na “época de ouro” como é intitulado antigo grupo de Jacob do Bandolim.

- [Silvério] Zé da Velha vai tocar um choro, vai oferecer um choro para todos.

Inicia-se assim “Pedacinhos do Céu” no formato “clássico do choro” revezando os dois instrumentos solistas (trombone e trompete) nas melodias principais e contracantos. “A” duas vezes, a primeira com o trombone e a segunda com o trompete, “B” repete a
mesma fórmula, primeiro trombone e segundo o trompete, sendo que sempre um faz a melodia principal o outro faz o contracanto (junto com as baixarias do violão de 7 cordas). Volta ao “A” repete-se mais uma vez a fórmula.

- [Silvério] Zé da Velha sempre gosta de tocar “Pedacinhos do Céu” um choro bem conhecido, e bem interessante, do grande mestre Waldir Azevedo. O Alessandro Rosa vai tocar um choro do Waldir Azevedo também com o nome de “Carioquinha”.

Inicia-se com o pandeiro puxando o ritmo, ouve-se a contagem, a introdução e entra o cavaquinho na melodia principal tanto na parte “A” quanto “B” e os dois sopros fazendo os “apoios” junto com a melodia e as notas da harmonia e da baixaria.

- [Silvério] Alessandro Cardoso no cavaquinho; Netinho, pandeiro; Charles, o mais novo sete cordas do Brasil, o Charles tá tocando o sete cordas tem uma semana, cê imagina como ele estará tocando daqui a um ano. Craque né, parabéns pro Charles.

- [Charles] Vou ter que pagar a conta hoje.

- [Silvério] Mais um choro, este choro nós gravamos eu e o Zé da Velha, junto com Yamandú Costa no último CD do Yamandú, nós fizemos um arranjo assim um pouco metido a besta, mas ficou legal, um CD bem legal do Yamandú e ele nos convidou para fazer está faixa, o nome do choro é “Machucando”.

Começa lentamente com o trompete fazendo de anacruse e ad libido a primeira parte e entra em seguida um maxixe com trombone trompete revezando melodias em uníssono com contracantos.

- [Silvério] Nós vamos fazer dois sets, um set um pouco mais curto porque resolvemos fazer uma paradinha aqui daqui a pouco pra tomar uma cervejinha depois agente volta pra fazer o outro set, é até bom pra dá uma respirada. O Alessandro vai fazer mais um choro do grande mestre Jacob do Bandolin “Noites Cariocas”.

Introdução livre de 12 compassos e entra a mesma fórmula utilizada em “Carioquinha” (o cavaco fazendo a melodia principal e os dois sopros fazendo o apoio que oscila entre notas da baixaria, da harmonia, e da própria melodia. Na segunda parte faz o trompete sozinho a primeira vez e a segunda, o trombone. Solo do Violão de 7 cordas sobre harmonia da primeira parte (2x) e em seguida entra o cavaco novamente na parte “B” fazendo a melodia principal e convenção com o pandeiro solando e em seguida retorna a parte “A” com o cavaco e os dois sopros fazendo o apoio.

- [Silvério] Cavaquinho: Alessandro. Nós vamos tocar mais duas e vamos dá um paradinha prá dá uma respirada e tomar uma “Original”, porque o único lugar que tem Original é São Paulo, mas aqui não tem. Vamos fazer dois sambas, um samba do Pixinguinha “Gavião Calçudo” e o outro “Pelo Telefone” do grande mestre Donga.

Mais uma vez inicia-se. Os dois sopros fazendo em uníssono “A” e “B”, volta para o “A” em uníssino e “B” com trombone, e “Pelo Telefone” variando entre o uníssono e contracantos e ao final um acelerando até o breque ensaiado e confirmado com os olhares e o sinal com a vara do trombone.

- [Silvério] Zé da Velha nosso mestre, Netinho, Alessandro e Charles. Tomaremos um descanso.

Intervalo. Os dois se sentam na mesma mesa, junto com os amigos vindos do Rio para 
assistir a apresentação, Zé toma cerveja e Silvério toma conhaque. O intervalo é de aproximadamente 25 minutos. Inicia-se novamente com mais um choro (?) revezando trmbone fazendo a primeira de cada parte e o trompete fazendo a segunda. Solo de 7 cordas, cavaquinho, (parte “A”) volta trombone 1a e trompete 2a na “B”. Frase final repetida 4x e volta ao “A” em uníssono até o final.

- [Silvério] Eu queria lembrar que nós temos o nosso cedezinho depois quem quiser adquirir, temos o segundo e o terceiro, vamos ficar devendo o primeiro porque a gravadora vendeu tanto disco que não tem (risos). Então quem quiser adquirir o segundo e o terceiro é só procurar nossa produtora que é a Carina e com direito a autógrafo do Zé da Velha e de todos nós ok? Vamos tocar um samba, aliás, um samba do Zé Brasil (?) que há tempo que não toca na rádio, é um samba maravilhoso, aliás, música boa tá difícil de tocar na rádio. Depois eu e o Zé da Velha vamos tocar um hip-hop pra vocês também, (risos) Zé da Velha e eu vamos mudar o visual ano que vem, vamos botar um cabelo punk, eu já to furando, já comecei furando a orelha, o brinco, o Alessandro também tá tudo certo, ano que vem vocês vão ver um visual totalmente diferente. O Zé vai um piercing nos lábios pra tocar trombone. Vamos começar “à capela” “Aos pés da cruz”.

Inicia-se somente os dois sopros, com o trompete fazendo a melodia principal e o trombone acompanhando e na segunda vez fazem o contrário. Em seguida retomam o tema do início sempre revezando contracanto com uníssono. Ao entrar o ritmo utilizam a mesma fórmula seguida na introdução “à capela”.

- [Silvério] Nós vamos tocar uma música, atendendo um pedido de meu amigo Ronaldo, que nós gravamos em nosso último CD, que é uma música do grande mestre Cartola “Cordas de Aço”.

Nessa música tocam apenas o violão de 7 um dedilhado lento e bem harmonizado e o trompete fazendo a melodia com uma interpretação “com sentimento” com ele (Silvério) mesmo disse. A forma das músicas tocadas pela dupla (e pelo quinteto) são relativamente parecidas. Com uma alternância entre trompete e trombone na função de 
melodia princial e contracanto com a utilização de alguns solos de cavaquinho, violão de 7 e pandeiro. Pode-se dizer que a construção da música é dada pela própria forma, porém com adaptações para os instrumentos que estão sendo utilizados, sempre mantendo certa rigidez sobre as melodias principais e contando, sempre com o apoio de uma banda (trio) bem consolidada, um violão fazendo uma baixaria “pé de boi”, bem marcada, e solos revezados entre trombone, trompete, cavaquinho, violão de 7 e pandeiro, respectivamente.

Entre outras coisas que pude ouvir nessa noite de choro, me lembro bem do sorriso e descontração de todos, platéia e músicos, ao som “engraçado” do choro. Curiosa a contradição entre, de um lado, um gênero que tomou como nome algo que remete diretamente para a tristeza e, de outro, a paisagem sonora desse gênero que remete exatamente ao inverso, à alegria, ao sorriso, à brincadeira e à gozação. Talvez seja possível (ao mesmo tempo que arriscado) dizer que o choro é o gênero musical brasileiro onde se encontra de forma mais ampla o humor do brasileiro.

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