16.1.10

Dario Arruda e a batalha com as Big Bands em São Paulo


Depois de um longo período sem postar nada, venho publicizar esta entrevista realizada em 23 de agosto de 2002. Suspeito para falar, uma vez que conheço, sou amigo e trabalhei junto por vários anos, Dário Arruda de Souza é o nome deste grande músico. Filho do saxofonista e arranjador Antonio Arruda “Cangaceiro”, Dário atualmente vem levando a diante o legado de seu pai. Após longos anos numa árdua tarefa de recuperar e organizar o acervo de arranjos do Cangaceiro, Dário hoje lidera a Orquestra Urbana Arruda Brasil com grandes nomes da música instrumental. Mais informações nos endereços [http://arrudabrasil.blogspot.com/] [http://www.myspace.com/arrudabrasil].

Giovanni: Bem, de início quero dizer que com relação aos direitos autorais, essa entrevista eu vou usar única e exclusivamente para a pesquisa, não será vendida nem publicada sem que você fique sabendo...

Dário: Sobre esse negócio dos direitos... A minha relação com a Ordem dos Músicos e os direitos autorais foi sempre a mesma: a maior sacanagem para lesar o artista no espetáculo em que todos ganham menos o músico. Inclusive se você trabalha num restaurante e o restaurante for mal, o proprietário não vai mandar embora o faxineiro, nem vai mandar embora o vigia dos carros, vai mandar embora o músico, você não tem garantia nenhuma de investir em sua vida, e seu tempo nessa arte. A OMB não garante nem os direitos básicos. Hoje em 2002 o presidente da ordem dos músicos é o mesmo a 31 anos. Não existe presidente de empresa, chefe, cargo nenhum em que a pessoa fica 31 anos no mesmo posto e ninguem tira. Quanto à lei dos direitos autorais, ela é totalmente difícil de entender, porque o artista não aparece, aparecem várias pessoas que tem direito caso se faça tais procedimentos, então o cara não tem a liberdade de criar e viver disso, porque ele tem que conhecer os dispositivos que são difíceis e saber qual usar, num âmbito de sucesso, o cara ainda precisa ter a sorte de ser restituído do direito dele. Porque têm várias histórias verídicas de músicos brasileiros que nunca receberam.

G: Essas histórias são interessantes, eu quero mais pra frente retomar. Vamos tentar então dar uma ordem, uma sequência. Queria que você começasse falando um pouco da sua relação com a música, como você começou, como você conheceu a música, através da sua vivência em casa, com seu pai etc. e depois como você decidiu abraçar ela como profissão.

D: Bom, a música foi sempre presente, desde que eu me conheço, meu pai escutava e estudava, sempre aconteceu, você ali escutando, ouvindo o cara tocando ou ouvindo alguma refêrencia, que até então eu chamava de música, mas dependendo da pessoa é uma referência. É como você ouvir um Oliver Nelson. É totalmente diferente de você ouvir outra banda instrumental também, um Harry James, cada um tem uma sonoridade, aliás, não só sonoridade, a concepção tanto mecânica, harmônica, melódica, muda tudo. Sempre curtindo por aí, nunca tive interesse de verdade de tocar um instrumento…

G: E aí você acompanhava um pouco os ensaios que seu pai fazia em casa?

D: Não, meu pai tocava sozinho ou com o Dorimar ou com o Piraí em casa, quando eles estavam juntos, o resto era só na televisão, na gravadora…

G: Não tinha ensaio em casa?



D: Não tinha, tinha os caras estudando, meu pai, raramente o Dorimar, agora ensaio de fazer a música em casa eu não me lembro, só algumas poucas vezes que foi algum pianista que meu pai fazia um som meia dúzia de vezes na vida, mas geralmente ali…

G: Era mesmo o trabalho lá nos estúdios… e aí como que foi que você resolveu abraçar o saxofone?

D: Eu sempre gostei do sax tenor e até um pouco do barítono depois do tenor, mas eu achava ainda mais bonito o instrumento que o som, porque pra mim era muito louco ver aquelas chaves aqueles dedos se mexendo e acontecendo um monte de coisa legal, eu falava "caramba, como que é? É mágica?" Foi isso daí, totalmente inocente, eu não sabia o que era música, pra mim música era como andar de carrinho de rolemã, não teria dificuldade nenhuma, você vai montando um carrinho cada vez mais legal, indo numa ladeira maior e mandando bala, mas aí não, aí você está na parte da realidade, do consciente. No começo eu me iniciei no clarinete por brincadeira, por brincadeira assim, eu queria tocar, mas quando eu fui vendo que pra tocar eu teria que estudar pra caramba… mas mesmo assim dava pra fazer um som, o som eu tinha a manha de fazer no instrumento. Aí consegui assimilar algumas melodias fáceis, porque a música não é bonita só quando é difícil, tem música simples que é muito bonita, então tinha aquelas músicas mais simples, repertório variado...

G: Foi nessa época que você foi para o CLAM?

D: Não, não, toquei muito anos com o Jorginho e meu irmão (Pedro Arruda de Souza), eles me agüentavam...rsrs.

G: E quando você foi para o CLAM foi para estudar o quê?

D: Saxofone popular, mas eu não tive contato com o que eu queria, que era saber ler e ter técnica, embora o professor fosse excelente. O professor queria me falar mais de improvisação, de harmonia, passar pelos conceitos harmônicos que o Hamilton Godoy escreveu. É legal também. É importante, mas eu queria outra coisa naquele momento, e também eu vi uma coisa: eu era muito bom e eles queriam os resultados rápido, mas só que os tons das músicas não eram os tons originais, que eu já sabia ler e tocar um pouquinho os outros tons, lá não tinha acidente nenhum, de repente subia uma oitava acima ou abaixo, legal, dava pra tocar, mas não era bem isso. Isso daí é música para um estudante de música, para quem quer trabalhar com a música não adianta, é melhor estudar as tonalidades e fazer no tom certo. Qual a dificuldade? É a leitura, é um instrumento de leitura. Agora, quanto à música instrumental... eu sempre gostei mais de música instrumental e acho que também, por meu pai tocar um instrumento melódico, eu fiquei com a memória, o ouvido melódico, eu guardo as melodias, já a parte harmônica nem tanto, dá pra sentir, mas a parte da melodia é mais imediata. E também a música instrumental possibilita o músico de trabalhar os mecanismos, técnicas no instrumento que seriam impossíveis com uma voz, impossível, nunca, só se for um anjo, descer do céu, aí pode até ser, ou então é impossível. As possibilidades de intervalo, de extensão etc. Se você escutar vários músicos, inclusive o John Coltrane, que já usava muito isso... Como você vai fazer semicolcheia com a voz?

G: Você acha que essa idéia de extensão do corpo, o instrumento como extensão do corpo, o instrumento como aquilo que faz o que seu corpo ainda não pode fazer é muito forte na música instrumental?

D: Bicho, eu acredito, posso estar falando a maior besteira, mas que a voz ela foi um quebra galho para os preguiçosos que não queriam estudar música, embora o estudo do canto orfeônico é o mais difícil que existe, mas acredito que pelo número de cidadãos e pessoas que não gostam de estudar, então a música não precisa de estudar, chega aqui e canta (cantarola o rife de “New York, New York” consagrada na voz de Tony Bennet e Frank Sinatra); "ah, é outro tom?" (faz inclusive uma modulação mostrando a facilidade de se cantar sem um estudo aprofundado). "Tá tudo bem, você entendeu?" Agora vai lá, escreve isso daí, executa no instrumento. Acho que a música (vocal) foi uma comunicação imediata, mas foi uma espécie de quebra galho. Eu acho que o certo ainda continua com todos [os músicos], os cantores também, mas tem que ter muita ênfase no resto da orquestra não só na voz, que nem mesmo nas peças eruditas, ou é instrumental, ou é cantada, quando é cantada a atenção está totalmente para o cantor…

G: Você está se referindo ao foco?

D: Sim. De repente tem uma sequência de três, onze, quinze compassos no máximo que aconteceu alguma coisa com a orquestra, depois mais vários minutos com a voz, aí você pensa que ali está rolando o idioma. Então eu acho que a música instrumental perde por causa da ignorância. Nos Estados Unidos já é muito mais valorizada, o ensino da música é imediato, na introdução da língua americana…

G: Então você acha que o instrumento ajuda no aprendizado da música, ou seja, aprender música através de um instrumento?

D: Claro! Pra cantar você tem que cantar junto com um piano afinado. Se você quer mesmo estudar a voz, você tem que ter a referência ali, saber suas oitavas, tocar as oitavas junto com o piano, então automaticamente, se você for estudar a voz através da música, da realidade, aí o negócio é muito sério, aí seria quase a idéia de usar a voz como um instrumento. Agora, o que está rolando na mídia? Até acredito que a própria Sandy (do grupo Sandy & Júnior) não sabe muita coisa de música, quer dizer sabe muito pouco, sabe aquele pouquinho, quer dizer posso até me surpreender, mas eu acho que não, acho que ali são atributos artísticos e a ignorância, não só do público, em primeiro lugar do artista, porque se você tem um nome e já ganhou dinheiro por que você não vai gravar aquilo que é certo, não vai fazer um tributo a compositores brasileiros do século XX que estão aí todos apagados, por que não vai fazer um trabalho cultural? Sabe por quê? Por que não tem condição técnica para executar um trabalho desse nível com qualidade. Agora aquilo ali, ligou a luz colorida, faz a dança e tal, é legal, anima o povo, mas e a classe artística? Quem paga por isso aí? Sandy e Júnior custa dez vezes e pra você contratar um orquestra é inviável. Agora, os shows de sertanejo por esses valores é legal? Mas e as orquestras? Deveria ser 5 milhões e não 120 mil, se for pela quantidade de sabedoria que você vai pesar ali no palco, só a introdução, para os caras irem ali, é bem por aí mesmo... Você pode pegar vários brasileiros que não sabem nem escrever o nome direito, mas foram gênios da música, da parte da escrita, do idioma total, vários deles, e muitos não tinham professor. Quem eram os professores desses caras?

G: De quem você está falando?

D: De vários musicos brasileiros, Noel Rosa, qualquer um, quem foi o professor dos caras, quem ensinou os caras a tocar violão, a compor, quem ensinou a cantar? O cara que ouvia e colocava o cérebro pra funcionar: violão não dá... trombone eu estou me dando bem... e tiveram a sorte na vida de se encontrar. Tiveram vários “Oliver Nelsons” que passaram batido que não acertaram o instrumento. Todo mundo tem extensão pra tocar um intsrumento, mas tem que suar um pouco.

G: Você estava falando sobre as orquestras, queria que você falasse um pouco sobre isso, sobre as orquestras que você conhece que você teve contato e depois da orquestra que você montou junto com o seu pai a “Acarajá” e depois a “Arruda Brasil”.

D: Eu ouvia orquestras americanas em casa e assistia orquestras brasileiras na rua, os temas americanos pra mim já eram iguais, tocados pra frente. Na hora do solo, aquela coisa maravilhosa que só quem esteve vivo ali naquele instante viu. Eu acho que ainda hoje em dia existem algumas poucas orquestras que estão na miséria, mas estão indo pra frente. Das brasileiras, na maioria que eu vi, eram todas orquestras grandes também, formação big band, 22, 23 músicos, com 3, 4 cantores, 2 cantoras e 3 cantores. Era muito legal. Os caras faziam já todos esses sucessos que os músicos de 15 anos de idade que estudam estão tocando: All of Me, Stella by Starlight, Samba de uma nota só. Eram as bandas da boate “O Beco”, por exemplo, bandas que tocavam em casas dançantes, tinham várias e ainda continuam, tem o “Avenida Clube”, o “Clube Homes” sexta, sábado e domingo. Vários dias da semana tem o baile com orquestra, na Av. Brigadeiro Luiz Antonio tem o “Cartola”, sempre tem, mais lá em baixo na Angélica também tem outro lugar que é gafieira, que sempre tem banda, às vezes tem duas numa mesma noite, e isso continua só que está muito…. sei lá. São bandas que existem a 25, 30 anos no Brasil e estão aí, a própria “Tabajara” tem mais de 40 anos e toca em todos esses lugares. Tem as festas dos clubes também, então tem as festas que já são tradicionais, no Brasil todo, São Paulo inteiro, grande São Paulo, interior, no Rio de Janeiro. Então quando você está com um trabalho artístico, se ele não abranger o território brasileiro é dificílimo. Vários músicos, o próprio Léo Gandelman, quando tentou fazer um grupo instrumental nos anos 90, pra fazer esse serviço dançante no Rio de Janeiro, não conseguiu nem manter os músicos pra ensaiar, eu li isso num encarte da revista Weril. Então o negócio é mais difícil! E os músicos sempre reclamando da parte dos cantores, porque cantor além de se achar importante, tem vários que são fracos, no contexto do peso da banda, no nível dos músicos da banda. Você pegar um cantor ou uma cantora que chegue lá e você pode até levar uma partitura pra pessoa cantar com a orquestra, com a letrinha em baixo, isso daí é muito raro no Brasil. E é o mínimo exigido pra você sentar ali no naipe, fazer parte de uma seção rítmica ou sentar ali no naipe. Porque lá você não pode sentar só pra ler o arranjo, tem muitas outras coisas, você vai tentar afinar, pronunciar, ter dinâmica, então a parte da leitura tem que estar bem. E isso é o mais difícil pra fazer. E aí eu parti pra orquestra instrumental. Tive a sorte de tocar na ULM e lá conhecer o Dico (Oduvaldo Las Casas – trombonista), o Dico me levou lá pra Sinfônica de Itanhaém, onde eu consegui levar o Cecé (Cesar Pinez – pianista) e o Jader (Jader Abs – baterista e percussionista). O Roberto (Roberto Sporleder – saxofonista e flautista) também chegou depois de mim, um mês depois, pra fazer sax alto. Aí de lá eu conheci o Bola, mas nunca tive tanto contato. Sempre que eu ia tocar o Bola já ficava lá de longe. Aí um dia, quando o Bola viu meu instrumento, ele falou “Porra meu que instrumento é esse, puta som, posso experimentar?” “Pode”. Na hora ele tocou naquela boquilha, naquele instrumento e perguntou como eu tinha conseguido. Foi assim que contei que era do meu pai, do “Cangaceiro” Arruda. E ele falou “meu pai e seu pai eram muito amigos, vamos montar uma banda! Você não tem uns arranjos do seu pai? Os do meu pai tenho poucos e é difícil, não dá pra tocar”



G: E o pai dele quem que era?

D: Adolar que faleceu, era o primeiro tenor da orquestra da “Record” onde já estava o Piraí, o Paioletti, e aí meu pai entrou no lugar do Adolar. O Adolar morreu às duas da tarde e às cinco já tinha show, os caras já falaram: “Vamos chamar o Arruda que já tá tudo certo” e aí meu pai entrou nessa. O Adolar tocava tenor e muito bem, meu pai falou que ele deu uns toques pra ele nos arranjos, o cara escrevia arranjo pra caramba, mas era tudo quebrado, cabeça gorda, você mesmo viu o Chega de Saudade que o Bola levou no Acarajá, não dava nem pra tocar, o negócio era samba-choro todo sincopado e nos naipes tinham divisões diferentes. Os tenores diferentes dos altos e dos barítonos. Tinha umas coisas bem difíceis. O negócio estava complicado, também ele escrevia diferente e difícil. E vai ser difícil ter músicos pra tocar aquilo, embora pareça que está surgindo uma nova safra no Brasil de músicos instrumentistas. Hoje em dia a projeção de uma banda instrumental é muito maior que uma banda dançante, uma banda de entretenimento. Ela tem certos amparos, porém continua a panela, a dificuldade, a máfia. Têm muito parente e muito amigo. O artista que vive do negócio não tem tanto acesso, pela própria esfera de conhecimento, de contato. Tem também esses caras que são os formadores de opinião que tão fudendo a mídia colocando só bosta há 40 anos e gravando também outras coisas... A gente fundou a Big Band nascendo da Sinfônica de Itanhaém que você foi convidado, o Guto (Guto Brambila) contrabaixo, o Clóvis já ficou na bateria que também já era da sinfônica, já tinham os trombones e trompetes, convidamos o Andrei, o Guto convidou o Guilherme Afif, o Bola já estava, praticamente a banda já estava ali. Mas eu ainda não tinha dado uma lapidada nos arranjos, então a gente tinha muitos arranjos da Berkley, do Sadao Watanabe, Sammy Nestico, arranjos bons, mas outra concepção, diferente de um arranjo feito por brasileiros.

G: Aquele “Blues Plus Four”?

D: É, esse daí é do Sammy Nestico, e mesmo o “Maiden Voyage”, “Stolen Moments”, eu gostava do “Tributo a Stan Kenton” (cantarola a introdução) era muito legal, “New Life”, a música até convencia, a gente não tinha onde tocar, não tinha nada, mas quem ouvisse a gente tocar gostava, a gente tinha essa relação com o público, como músico, como artista com sensibilidade, a gente nunca passou vergonha com a orquestra “Acarajá”, as poucas vezes que tocamos, a banda convencia porque tinha o peso, o pique. É acústico né!! Não era eletrônico incomodando o tímpano e o cérebro do ser humano. O negócio vinha na natureza, então já é outra timbragem, além da qualidade dos músicos e dos arranjos, mas é inviável, hoje em dia eu vejo que é uma loucura montar uma big band. Só se você tiver dinheiro, por que o negócio é quase impossível. Tá muito difícil, o negócio quase morreu, e pra você entrar no setor de gafieiras, primeiro que você tem que ter vozes também, você não vai poder fazer um setor de gafieras sem vozes porque não é tradicional, a banda pode até fazer algumas seleções num baile de três entradas de uma hora, então em cada seleção cinco a dez minutos de instrumental da big band depois é tudo cantado. É isso daí que eu sempre via, tudo cantado com o melhor. Desde “Sapato Velho”, o melhor que você tiver da música brasileira e a orquestra quebrando. A gente continua com a “Arruda Brasil” aos trancos e barrancos, é muito difícil. O grupo é composto por dez figuras. Todos vivem da música, porém é dificílimo conseguir agenda em que nós dez com um espetáculo escrito, equilibrado, arregimentado por maestro de carreira seja conquistado num preço mínimo. Então a batalha é essa. Agora, quem vê ao vivo realmente gosta. Eu sinto isso. Se fosse um produto que eu me envergonhasse eu não faria, mas eu vejo que a projeção existe entre os seres humanos, porém a direção do que está sendo valorizado é muito fraca, a cabeça do pessoal é muito ruim. Eu continuo estudando saxofone um pouco melhor do que antes e adquirindo o hábito de tocar coisas diferentes toda semana, se possível todo dia. Fazendo cópia de arranjo, montando pasta de big band, mesmo acreditando que seja difícil, mas eu acho que não tem alternativa. Porque se você for trabalhar numa empresa, se você está fazendo remédio que vai salvar a vida do ser humano já é a maior sem vergonhice porque já estão usando produto de segunda, estão lesando funcionário, estão fazendo um monte de coisas absurdas, deixando de informar o cliente etc. No banco então... nem se fala. Estão ganhando tudo em cima da miséria do pobre. É o lucro do rico, se você tiver num órgão federal, público, aí você virou sem vergonha de vez porque você tá fazendo parte de um cabide. Se você pegar a própria USP metade dos cargos de professores não exerce a função do jeito que deveria exercer. Eles estão com empresa, com escritório, estão usando equipamento da USP. Se você for no órgão do governo tem a propina, se o policial te parar na rua também, então está tudo errado. Se você não for seu próprio médico, ou próprio músico, qual que é a sua relação com o ser humano nessa vida? Não existe mais outra relação, a não ser grana, status, projeção. Agora se você está ali fazendo o bem, querendo agradar a pessoa, amar, salvando, consertando uma artéria, acertando um braço…

G: Para você a experiência da música ao vivo é algo essencial?

D: É essencial tanto a música, como em todas as esferas da arte, na poesia, na dança, no filme, no teatro, tudo. Só que tudo isso se tornou banal. Existe o bom escritor de livro? Existe, mas só que o cara consegue vender 50 mil unidades, não 11 milhões de cópias como o Paulo Coelho. Os caras acham que o Paulo Coelho é o melhor. Ele é o melhor pra quem quer achar que ele é o melhor, porque tem vários na praça, só que ele teve uma ênfase, ou a sorte, ou tem contato, ou é coisa do governo. Então tem muita coisa, o Brasil é muito rico, miserável é a população. O Brasil tem ouro pra caramba, petróleo, comida, tem dinheiro, imposto pra caramba, que é cobrado e que é desviado. Era pra isso daqui ser como Canadá! Sem ter inveja da gente, que era pra genta estar todo mundo na praia trabalhando três dias por semana, seis horas por dia, se nada fosse roubado. Só que é o diabo!! As coisas ruins! E isso se projeta na área profissional, e na área familiar. A área artística então... é totalmente esquecida. Aquilo ali hoje em dia é o maior patrimônio, é o serviço do cara. Se você pegar um trompista, o cara que toca trompa, o cara não tem onde exercer seu serviço. Ou ele vai tocar na Sinfônica do Estado, ou na Orquestra Jazz Sinfônica. Porque não tem espaço. Se eu sou mecânico, por exemplo, tem 17 mil oficinas em São Paulo pra trabalhar. Se eu sou advogado, tem 15 mil escritórios. Mas não. Eu sou trompista. Eu tenho serviço na Filarmônica de Berlin ou de Brasília. O negócio é quase impossível, é inviável e se o cara entrar aí ele se arrumou. Se não, não. Então é muito difícil. Enquanto depender da ignorância, enquanto existir ignorância você não vai projetar a música instrumental, erudita popular, com estilo próprio. A realidade é essa, nunca vai ter conserto. Você vai correr atrás por amor, porque você gosta e acredita, e pode ser que Deus seja misericordioso e te esbarre com a sorte e você esteja pronto. Agora se você for entrar por status, um estilo, uma grana... É isso daí só o que eu tenho pra falar.

G: E você continua fazendo o trabalho de arquivo e copista?

D: Continuo. Partituras são documentos. Eu já toquei em algumas bandas que faltava um terço das partituras. Quando a pessoa toca sempre na banda ela faz de ouvido a voz de alguém. Muitos arranjos bons se perderam, que não foram copiados duas vezes, guardados (os originais) em plástico selado para amarelar menos, corrigidos porque sempre tem acerto etc. Quando você está trabalhando com uma pessoa absoluta, um cara que escreve, copia, e faz um arranjo da altura de cada músico que está sentado atrás da partitura, com o bom gosto dele e o conhecimento da técnica: o negócio fica muito sublime, parece que fica fácil. Então você tem que ter um pouco mais de cuidado, mas toda obra de todo artista deveria ser arquivada porque sempre tem alguma coisa de influência.

G: Influência você diz do quê?

D: A maneira de o arranjador escrever uma celula musical, um intervalo musical seguido de cinco, de três, de onze, ali sempre tem uma coisa que fica bonita então você tem sempre que ter a cabeça esperta. Dizem que o próprio Charlie Parker só ouvia música country né? Você sabe? Ele quando ia escutar música, tipo assim num bar, tinha lá os clássicos Stan Kenton, ele ia lá e ouvia música country e falava: escuta a letra, a letra é bonita!

G: E ele gravou música brasileira, tem uma gravação dele de “Tico-tico no Fubá”.

D: Tem, tem. Agora no dia em que eu fui lá naquela escola de inglês com a Pâmela que tava tocando o [Winton] Marsalis…

G: No workshop?

D: Isso no workshop na “Alumni”. Aí chegamos lá entramos, a gente estava com crachá, aí ficamos perto do homem. Sujeito muito gente boa. O pessoal perguntou a relação dele com o choro, com a música brasileira, ele não conseguia entender o que era choro. O pessoal traduzindo, falando em inglês, três, quatro, cinco, daí eu gritei: Pixinguinha! Aí ele: ah, já escutei Pixinguinha. Com o nome do autor ele entendeu, e falou: muito bom, demorei vinte anos pra aprender a tocar o jazz direito, tocando de pequeno, família de músico, indo na escola, com professores bons, tocando em banda boa, demorei vinte anos pra poder tocar jazz, direito, entender como é que é o jazz, agora eu quero pegar vinte anos pra aprender a tocar música brasileira, outro estilo.

G: Ah ele falou isso?

D: Outro estilo, você não tava lá?

G: Tava junto com você, mas eu não lembrava, é super interessante um cara com cabeça aberta e muito disciplinado.

D: Então, esses aí são os exemplos. Na música brasileira tem o Hermeto Pascoal. Tem o Sergio Mendes também, que eles já tinham um grupo chamado “Brasil 68”, ou “Brasil 62”. Um grupo instrumental só de música brasileira.

G: E esse pessoal das bandas de hoje, “Mantiqueira”, “Soundscape”, o pessoal da “Núcleo Contemporâneo” e outras bandas e produtoras?

D: O Teco [Cardoso] é excelente. A “Banda Soundscape” é um dos maiores valores históricos da arte na minha opinião. Porque se você for na “Jazz Sinfônica” há muita sem vergonhice nas contratações, não são os melhores músicos e o salário é baixo. O John Neschling conseguiu acertar a Sinfônica do Estado e a orquestra é excelente. Eu não manjo nada de erudito, mas as duas, três oportunidades que eu fui ver, a preços populares (R$ 12) na Sala São Paulo, achei excelente. Excelente o nível dos músicos. O maestro é muito bom também. Eu não manjo muito de regente, de maestro, mas já tive o prazer de assistir uns dois, três ensaios, umas duas ou três apresentações. A orquestra é totalmente obediente a ele, é muito legal. Agora já na “Soundscape” você tem músicos jovens que fazem vários arranjos lá também. Então realmente mesclou a perfeição, com a raiz da arte, com a realidade dos artistas, que são os melhores músicos que existem na noite. Se você pegar agora também na nova estrutura da banda do Proveta, a “Mantiqueira”, tem novos músicos, 70, 80 por cento dos músicos trocaram, o Jericó continua no trompete, um senhor já, o Proveta, mas mudou, eu tava vendo agora em Campos do Jordão os caras passaram na televisão, os caras estão tocando mais lento, mais piano, foi uma apresentação diferente, dentro de um teatro, filmado por televisão, não era dentro de um bar. Se bem que o espetáculo tem que ser o mesmo salvo que na televisão se você tocar as músicas mais lentas um pouco mais pra trás com suingue, melhora, e as mais rápidas um fio de cabelo pra frente também soa mais legal por causa do impacto. Tem isso daí, porque a experiência de um músico tocar numa praça aberta, num estúdio, num programa ao vivo à primeira vista sem errar, é muito, não dá nem pra ficar falando do excesso de qualidade que você tem que ter.

G: Pra exercer esse tipo de trabalho…

D: Tem uma formação de orquestra com cordas, outra que é um trio, outra que é um quinteto, ali tem uma big band, mas lá tinha tango, ali foi bolero, cha-cha-cha, lá é jazz, aqui é improviso, teve o blues, teve instrumental, teve a cantada …

G: Diferença de gêneros e formações né…

D: Você tem que ser extremamente dedicado pra você poder segurar o trampo, com aquela qualidade regular, oito Porque os que atingem dez ainda é uma percentagem muito pequena, um em dez mil naquele instrumento. Se você pegar em São Paulo existem dez tenoristas bons no máximo, bons mesmo, na cidade de 10 milhões de habitantes, 1 milhão conhece música, dez por cento, dez mil tocam saxofone, tem só um mesmo que é o legal, você pode pegar lá, o Vitor (Alcântara) é execelente, o (Vinícius) Dorin é excelente, o (Hector) Costita é excelente, o (Roberto) Sion é o máximo, o Teco, o Proveta, o Cacá (Malaquias), o Carlos Alberto, você vai pegando os caras, mas o povo, o cidadão, o indivíduo elege um pra ele...

G: E muitas vezes é o mesmo nível.

D: E dentro dessa cúpula dos saxofonistas, dos músicos, da banda, de tudo, eles elegem um, aquele fica venerado, o todo venerado. Você vê a moral que o Antonio Arruda tem tocando ou escrevendo, aquele não tinha coisa errada. Você vai pegar o Sion, conduzindo estudantes, escrevendo arranjo, tocando profissionalmente em várias orquestras, fazendo solo... vai falar o quê dele: esse cara é pai, esse daí tá fazendo de tudo e por tudo. Daí o espetáculo do sertanejo vale dez, quinze vezes mais, uma banda instrumental pra você vender a 3 mil, 5 mil reais, que o cara estudou 10, 20 anos para estar ali mostrando o espetáculo, você não consegue, é muito difícil. Se você pegar o Sergio Mendes tocando “Chega de Saudade” em 1958 e pegar agora em 98, o cara tem 40 anos em cima, 44 anos de estudo daquilo ali, com outra concepção, com tempo de vida, com um monte de situações que ele passou na vida para poder chegar ali. Aí não... ah, mas é em dólar! Você ganhava 200 dólares o cachê! Até diminuiu para os músicos que não conseguiram a projeção da mídia.

G: Por falar em experiências, agora retomando um pouco, o que você achou de tocar no Conservatório Villa Lobos com o Branco (maestro José Roberto)?

D: Falando do ponto de vista político, eu achei que foi uma maldade enorme com os artistas porque eles quiseram montar uma orquestra big band numa escola de música que não tinha os alunos que compunham a orquestra. No entanto, como tinha um maestro de uma pequena projeção no meio dos arranjadores, isso falando dos arranjadores bons que tem no Brasil e que estão aí, e pela pessoa dele que era muito legal, hoje em dia não sei, espero que seja, uniu os músicos, pela própria carência de não se ter espaço pra se tocar numa big band. Porém Osasco tinha condições de pagar dois salários mínimos, dá uma cesta básica, roubaram mais de 30, 32 milhões de precatórios!! O cara que era presidente da FITO!! O cara não deu um piano de 25, 50 mil reais pra escola. Eu trabalhei dois anos de graça, vivo da música, sendo que lá as pessoas estavam sendo pagas. Se tirassem o salário daquelas pessoas eu queria ver quem teria o valor, com a música, de ir lá e fazer de graça. Então acho que aquilo ali é a grande rocha que continua empurrando o Brasil pra baixo, eu não participo nunca mais na minha vida de uma projeção dessas pra ir tocar pra político que está roubando milhões do povo e o artista continuar sendo lesado porque querem pagar um diretor, um maestro, querem pagar dois, três professores que dão aula e os outros 10, 12, 15 vão de graça e são artistas, são músicos, são cidadãos, são seres humanos!! Eu mesmo, várias vezes não tive condição de ir, ia e voltava de carro com você de carona porque não dava pra pegar um ônibus, e não era só eu, vi outros nessa situação. E ia lá e tentava tocar o meu melhor, eu ainda montava a orquestra, vieram me arranjar o serviço de montador, você lembra? E eu não quis.

G: Eu lembro…

D: Eu não quero isso daí, não é que eu quero ser maestro, mas eu não quero ser montador, porque a partir do momento que começarem a pagar, se eu não for vão começar a me encher o saco, até vi que nessa parada o Branco quis me adiantar um lado, eu ganharia uma grana, só que eu não queria fazer isso daí, eu não estou lá para fazer isso, os caras estão ganhando milhões, eu estou lá pra tocar. Põe um professor pra me ensinar, sabe, o tributo tinha que ser diferente. Eu tive a experiência de ver arranjos bons, mas com dificuldades enormes que profissionalmente não dá pra o músico tocar à primeira vista ou à segunda vista. Então o contexto de uma banda de estudantes, ele tem que ter uma pedagogia e uma didática mais leve, e não pegar arranjos de uma banda de músicos bons (…) e colocar para estudantes. (…) Há níveis, você teve a experiência do Fred [Tangary] que toca pra caramba, mas na big band ele ficava atrás de você, gostando e curtindo porque ele estava começando a perder a ignorância com aquilo, é um cara bem intencionado com a música, toca a vida inteira, desde moleque, mas demorou 20 anos para enxegar aquilo. Então têm essas estratégia, os governos que estão tendo condições de montar bandas aqui nos arredores de São Paulo, Jandira, Barueri. O Beto Caldas (maestro) parece que está com uma também no interior, eu tô sabendo, mas não há projeção na capital, é corpo a corpo, mas estão fazendo alguma coisa (…). Se ninguem exigir total espetáculo, não adianta, não é só a Ordem dos Músicos que está pisando na bola, é a classe artística como um todo.

G: E o que você acha dessa luta do Lobão e o pessoal que está com ele?

D: Em relação aos direitos autorais, que a maior luta deles é essa né, nunca gostei muito do som do Lobão, mas sempre gostei da mentalidade dele, embora eu saiba que ele é um músico que toca Bossa Nova e toca Jazz também (…). E agora, depois de mil experiências (…) sabe que só tem ladrão, descarados, os gigolôs. São gigolôs, só que como gigolô é meio pesado, você fala empresário! É legal a luta dele, dele e do Sion para acabar com a Ordem (dos Músicos). O Roberto Sion mesmo é um cara que podia ter saído do país para viver de música, mas ele teve a humildade de ficar aí e ajudar a música. O que eu já conheci dele é extremamente sério e bem intencionado.

G: Então pra você falta espaço, não só postos de trabalho, mas espaço pra aparecer e alcançar esse monte de gente que não tem acesso?

D: Falta o endereço, falta o artista bem intencionado (…), ele é um operário da música, ele está lá para entreter com a alma dele, então ele é um artista, que deve estar acompanhado também dessa situação da vida. Então o cara não tem oportunidade de trabalho, não tem um grupo de amigos do mesmo nível, porque no Brasil, tirando a OSESP, a Experimental, não tem um nível mínimo. E mesmo lá que o nível é alto, tem aqueles que precisam correr pra manter o posto, então é muito difícil isso daí, tudo é difícil, mas eu acho que se ensinasse na escola as crianças, daqui a 50, 70 anos seria diferente.

G: Educação Musical na escola?

D: É, e não ser um curso caro e particular, isso seria ajudar na educação, mas não para ganhar 10, mas 50 pra ter uma sala de 30 alunos.

G: Falamos bastante da relação entre as instituições, mas o que você acha da relação com os músicos e com as bandas. Tem uma carência de postos de trabalho, então através dessa carência, você acha que isso acirra os ânimos na disputa por lugares para tocar?

D: Isso existe, é como um cartel, uma máfia, hoje em dia não, o cara quer uma banda para tocar, ele vai na internet fazer um levantamento, então há está pequena melhora, agora onde já tem uma tradição é difícil você furar, pra não dizer impossível.

G: E nos demais lugares fora desse circuito, nos bares etc…

D: O bar parte do princípio que o cliente tem que pagar a música, isso já é um erro, o cara não pode cobrar um covert, ele cobra uma entrada e ele arca com a despesa da música, mas isso é o maior “chaveco” que muito bico da música utiliza. Então isso atrapalha o serviço de quem realmente vive da música. (…) De repente você olha para os seus colegas: aquele virou engenheiro, aquele outro advogado. Os caras tem direito a se projetar, daqui a 5 anos eu vou comprar minha casa, meu caro etc. Na música não dá para raciocinar desse jeito.

G: Você acha que esse é um dos motivos que fazem as pessaos desistirem da música?

D: É. Não tem piso salarial. Dentro do que é cobrado de direitos autorais, o governo devia fazer um exame nacional, habilitar quem vive da arte, e eles pagarem o mínimo, da mesma forma que eles pagam funcionários públicos que não trabalham. O governo tem a obrigação de bancar a arte e a cultura, esse seria o único jeito (…). A música não é nem tratada, raramente você abre um jornal e vê um assunto de música sendo bem tratado (…). A música popular alegra o povo, mas porque a orquestra não vai alegrar também? Quem que vai pensar com a música? Que o músico precisa ter um instrumento bom? Ele quer ter um reconhecimento como instrumentista, tocar numa banda instrumental, não apenas acompanhar cantores, onde vai haver pouca brecha para solo, ele vai fazer base e acompanhamento e é uma história repetitiva que está aí (…).

G: Pra terminar eu queria que você falasse do que você tá vendo de Música Instrumental hoje em dia, você acha que tá crescendo, tá diminuindo, tá piorando, o que você acha?

D: Acho que está melhorando, mas ainda tem muita coisa pra ser feita. Tem muito picareta no meio. A OMB e o Sindicato precisam melhorar. Tem muita banda boa por aí que tem condições de apresentar bons espetáculos, só precisa de mais espaço.

G: Darião, muito obrigado pela entrevista e sorte no percurso. A estrada é longa, mas vale a pena ser percorrida!

D: Eu que já larguei tudo pra viver da música, não tenho dúvidas sobre isso.

G: Valeu!!

2 comentários:

Murilo disse...

Nossa Giovani, fiquei impressionado com teu blog, onde se discute por meio de entrevistas as vivências dos músicos nessa profissão tão desestruturada... estou justamente começando a pesquisar o assunto e as entrevistas que vi aqui me animaram. Deixo teu blog como recomendação de leitura no meu, www.etcjazz.blogspot.com. Abraço.

Rocio disse...

Que belos coisas que você pode encontrar no tempo quando estamos relaxados, por isso é sempre bom estar vendo isso na internet, eu acho que nós precisamos ir direto para relaxar para os restaurantes em barueri